Monday, January 23, 2006

À sua espera

Eles já se conheciam há quase um mês. Teresa, sempre muito bem arrumada, nunca esquecendo-se de combinar cores de roupas, sentia algo diferente nele, algo que a trincava, que a incomodava, todavia nomear aquilo não conseguia. Roberto sempre fizera o tipo conquistador, era popular entre as meninas e o sucesso nunca havia sido efêmero. O que acontecia era que nenhuma delas sabia que eram apenas uma dentre tantas. Interessava-se por um bom corpo, simpatia, timidez. As tímidas o excitavam, ele gostava do prazer retraído. Conheceu Teresa através de José, um amigo da faculdade de Direito. Tudo começou naquele dia naquele bar. José levou Teresa e mais um amigo para comemorar a passagem para o quinto período da faculdade. Teresa, no terceiro de Enfermagem, conseguiu manter uma boa conversa paralela com Roberto. Todos conversavam harmoniosamente e, às três da manhã, trocaram todos os telefones. Uma semana depois, Roberto surpreende Teresa ao telefone:

-Teresa? Lembra de mim? Roberto, José, Direito, bar, semana passada?
-Olá Roberto, como iria esquecer-me de você? Como está?
-Estou bem. Preciso de um favor seu.
-Ah, sim, diga.
-Diga-me, o que devo fazer com alguém com crise de pressão alta?
-Pressão alta? O que houve? É sua mãe?
-Sim, ela.

Pretexto. Como ele pôde?!

-Muito obrigado, Teresa, eu sabia que poderia contar contigo.
-Por nada, Roberto, quando quiser, tem meu telefone.
-Obrigado mesmo. O que fará amanhã à noite?

E então, encontrar-se-iam no dia seguinte, mesmo bar, ter uma boa conversa. Ele era atencioso, ouvia a todas aquelas palavras desorganizadas em função da timidez. Ela olhava nos olhos dele com pouca freqüência. Deixou-a em casa e tentou um beijo, mas ela se fez de difícil e não correspondeu. Arrependeu-se quatro segundos depois, mas já era tarde demais.

-Eu entendo, Teresa, deve ser cedo demais.
-Não, é que... não sei... não sei o que houve e...
-Tudo bem. A gente se vê.

Ela ligou para ele uns dias depois e quis encontrá-lo para conversar. O encontro seria na praça principal do bairro às sete. Já eram quase cinco da tarde, o sol já se despedia e o nervosismo chegava à Teresa. Sua mãe perguntou-lhe as horas: "falta uma hora e trinta para as 7, mãe" e logo deu-se conta do que havia dito. Tratou de corrigir-se: "são cinco e meia". Ela não conseguia pensar em nada mais. Aquela noite seria decisiva. Teresa iria descobrir sua ousadia pela primeira vez na vida. Ela queria saber que existia de verdade.

Eu tenho lugar. Eu sou Teresa. Eu sei o que possuo e é tempo de descobrir-me. É tempo de doar-me. Eu tenho vontades e existo. Eu existo porque sei o que quero e sei o que sou. Preciso desembrulhar-me desse papel de alumínio para que ele veja quem sou. Ele não sabe do que eu sou capaz. Ele não me conhece e nesse ínterim ele não pôde me saber. Ele não me viu. Não porque não quis, mas porque não lhe mostrei.

Sinto nele algo que me fisga. Sinto que o olhar dele fixo a mim me envolve como a voz revolve a fala. Como águas quentes num dia de inverno me completam. Como o toque envolveria o corpo. Como se aquele olhar penetrasse por mim e ultrapassasse o alcance de minha visão. Não me importa o fato de tê-lo conhecido há pouco. Eu sei o que sinto. E já era hora de saber. Eu não sei o que ele sente, nem sei se ele desconfia do que eu sinto. Mas se desconfiasse, não desistiria de mim. Se não esperasse algo, não me encontraria hoje à noite. Ou quer ele apenas conversar? Não. Eu lembro daquele olhar. Dou adeus à ingenuidade e abro as asas porque sou livre. Eu sou minha.

Teresa tomou seu banho em meio a tantos pensamentos e saiu de lá limpa e livre para a vida, pela primeira vez. Arrumou o vestido preto e os sapatos que havia ganho de sua prima Inês. Era seu aniversário de dezoito e os sapatos ainda cabiam. Era imensa a felicidade por poder ter escolhas. Ela gostava de ter opções. O mundo material para ela nunca foi de tanta importância, mas sua auto-estima veio de sua descoberta, e passou a agarrar-se à moda e à aparência.

Às seis e meia, sairia de casa. Até a praça, são vinte minutos a pé. Ela estava decidida. Ela sabia o que fazer, embora não soubesse que sabia. Seus pensamentos a afogavam e então Teresa fingiu parar de pensar. Afogou-se em seu perfume, então. E nessa troca, deu continuidade à arrumação: arrumou o cabelo, passou uma leve maquiagem e chega. O que ele iria pensar se se arrumasse tanto? Que Teresa pretendia exibir-se?

Tirou o vestido e pôs uma saia leve e uma blusa branca de seda. Mais confortável, ela estava linda. Os sapatos pequenos de Inês ficaram perfeitos com aquelas roupas. E a seda? Proposital. Quando Roberto a tocasse, tocaria aquele tecido leve debaixo do qual encontraria a pele de Teresa, tão macia quanto sua blusa. Todo o corpo macio, esperando pelo toque e pelo beijo de Roberto.

Seis e vinte e cinco. Ela foi à praça. Chegou lá e sentou em um dos bancos à espera de Roberto. A praça estava cheia. Já eram cinco para as sete e nada de Roberto aparecer. Sim, ele é pontual. Roberto não vai chegar antes da hora combinada. Deve pensar que sou como a maioria das mulheres que acham que chegar atrasada é um charme. Deixar a pessoa esperando. Não sei. Sete e dez, onde está Roberto?

Teresa olha para o relógio já aflita, mas quer aceitar que ele chegará. Já faltam vinte minutos para as oito. Ela olha ao redor impaciente. Vê casais de namorados em bancos, vê crianças no parque, vê pessoas passando. Os namorados e suas carícias em público são as imagens que mais a atraem e ao mesmo tempo a repulsam. Ela perde suas esperanças. Não todas.

Eu sei que ele vem. Ele não pode fazer isso comigo, eu sei que existo para mim. E para todos. Se ele não vier, o que essas pessoas irão pensar? O que eu irei pensar? Onde ficará Teresa? Eu já me afirmei, ele precisava me confirmar. Por que atribuo isso a ele? Porque é a primeira vez que deixo isso acontecer.

Roberto não virá. Desistiu de mim e nem ao menos se preocupou em me avisar. Não sei mais se sou. Não sei mais se sinto, se procuro, se desespero, se me preocupo. Eu me procurei e me achei. Por culpa de Roberto. Ele é culpado. Porque o que fez não entendo. Por que fez isso comigo? Pelo simples facto de eu não ter correspondido aquele beijo? E agora o que faço com esse desejo e com esse arrependimento? O que faço? Ele deveria estar aqui para ao menos me responder.

Teresa decide voltar para casa e ligar para Roberto. Pega o telefone, seca as lágrimas que não caíram e disca aquele número, o qual pretendia nunca mais olhar. Embora em sua memória ele já estivesse gravado. Pensava que o emocional era controlável e por inúmeras vezes foi posta à prova. Ela mesma!

Roberto atendeu o telefone. Disse-lhe que decidiu não ir porque assim seria melhor. E por que a deixara esperando feito uma tonta? Por quê? Ele é um completo idiota. Ela não queria mais saber. Roberto não havia atingido o que Teresa esperava. Ela estava confusa. Quem era Teresa? O que fazer com Teresa? Teresa tem mais experiência.

Teresa sou eu e eu sou o que penso. Meus pensamentos sobre mim mesma refletem no que sou. Eu precisei de exteriores para descobrir-me e isso nunca deverá acontecer novamente. Eu aprendo coisas sozinha, por ações que não realizo sozinha. E eu sei ser. Porque eu aprendi a ser.

Roberto nunca mais apareceu. Nem Teresa. Apenas para ela mesma, e para quem a conquistasse de verdade. As roupas de seda não estariam mais aptas a um primeiro ou segundo ou terceiro encontro. Ela havia amadurecido, finalmente, embora se lembrasse claramente do que queria ter vivido e não viveu.

Sunday, January 15, 2006

Textos II

O ovo e a galinha


De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Ol
ho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.

O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.

Ao ovo dedico a nação chinesa.

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.

O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.

O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.

Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.

Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.

E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.

É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.

“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.

A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.

Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.

De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.

A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.

Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.

E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.

Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.

A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.

Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.

Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.

Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.

Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.

Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.

(Clarice Lispector)